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A resenha: Descanse em paz

A resenha: Descanse em paz

O ano de 1994 foi um ano difícil para os argentinos. Na Copa do Mundo, que foi disputada no mês de julho, duas enormes decepções para o país: a eliminação nas oitavas de final, especificamente no dia três daquele mês, para a seleção da Romênia e o exame positivo para o uso de substâncias ilícitas do ídolo nacional, Diego Maradona, o que decretaria seu fim com a camisa da seleção. Tudo isso sem contar a dificuldade econômica que o país enfrentava com as medidas para conter a inflação e estabilizar o país tomadas pelo governo do presidente Carlos Menem. Contudo, o pior e mais triste momento do ano foi o atentado terrorista contra a AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina) no dia 18 de julho daquele ano, vitimando 85 pessoas e deixando mais de 300 feridas.

É nesse contexto que se passa o ótimo longa de drama e suspense Descanse em paz (2024) do diretor e roteirista argentino Sebastián Borensztein (Um conto chinês). Adaptado do livro homônimo de Martín Baintrub, o filme conta a história de Sergio Dayán, interpretado pelo excelente ator argentino Joaquín Furriel (Vosso Reino), um industrial judeu, que herdou o negócio do pai, mas que está afundado em dívidas e à beira da falência.

Sergio Dayán tem uma vida de alto padrão. Ele é casado com Estela, vivida pela cantora e atriz argentina, Griselda Siciliani, com quem tem dois filhos. Logo no início da trama, Sergio e Estela oferecem uma festa luxuosa para a filha que realiza seu Bat Mitzvah. Durante a festa, após a filha emocionar os pais com um singelo discurso, Sergio passa muito mal e desmaia. Estela se assusta e socorre o marido, que brevemente recobre os sentidos.

Já na residência de ambos, Estela pressiona o marido para que ele fale o que está acontecendo, uma vez que percebe o quanto ele está tenso e parece estar escondendo algo. Nesse momento Sergio revela que a família está completamente quebrada, pois deve muito dinheiro para muitas pessoas. Na fábrica não paga seus funcionários há meses, razão pela qual decidem, para piorar a situação, entrar em greve até que sejam pagos. Diante do terrível momento, Sergio começa a emprestar dinheiro de vários parentes e amigos, até que decide recorrer a um agiota.

Não há nenhuma explicação sobre o que tenha levado o negócio de Sergio a essa situação. Contudo, o contexto do país daquela época nos dá alguma pista quando o industrial, num rápido diálogo, afirma que competir com os importados se tornou algo impossível. As medidas de abertura econômica do governo e a aproximação com os EUA, seguindo o Consenso de Washington, levaram muitos empresários argentinos à falência.

De qualquer maneira, Sergio, estressado, pressionado, devendo para várias pessoas, tenta ir pagando aos poucos. Quando vai tentar negociar com o agiota Hugo Brenner, interpretado pelo ator Gabriel Goity, recebe, além de um prazo exíguo, ameaças de que se não cumprisse com a dívida, seria morto ou veria alguém da família sofrer. Desesperado, Sergio vende sua casa e consegue mais dinheiro emprestado para pagar o agiota. É a partir daí que o seu inferno realmente começa.

Em uma manhã, após conseguir o dinheiro para pagar Hugo, Sergio deixa seu carro no trabalho e vai a pé para o escritório onde pagará sua dívida. No exato momento que começa a sua caminhada, o atentado ao AMIA acontece. O país inteiro entra em choque com a tragédia e Estela liga para a secretária do marido para falar com ele. Ao ser informada de que ele não estava lá, pois havia apenas deixado o carro no trabalho, entra em desespero, ao imaginar que ele pode ter sido uma das vítimas do atentado. Nervosa, corre para o local, onde só há escombros e gente ferida. Os nomes das vítimas já identificadas estavam numa lista, onde Estela não encontra o de Sergio. Ao ser convidada por um oficial para verificar se seu marido estava entre os não identificados, Estela nada encontra. Contudo, a pasta de Sergio com seus documentos estava lá entre os achados na tragédia.

Sergio, entretanto, acordara ferido, em meio aos escombros, sem saber bem o que havia acontecido e onde estava. Socorrido e com os ferimentos já estancados, tentara ligar para Estela, que não atendeu. Ao invés de ligar novamente, começa a pensar no que tinha acontecido. Sergio havia feito um seguro de vida com um prêmio altíssimo e talvez aquela seria a oportunidade de se livrar das dívidas e proteger a sua família. Por conta disso, resolve desaparecer e ir embora, sabendo que seu corpo jamais seria achado.

Assim, Sergio pega um ônibus e vai para a fronteira da Argentina com o Paraguai. Atravessa ilegalmente e chega em Assunção, onde começa a trabalhar numa loja de eletrodomésticos e viver uma nova vida com identidade falsa. Em seu emprego tem a simpatia de Ilu, interpretada pela atriz paraguaia Lali Gonzales (Um lugar no caribe), esposa de seu chefe, apelidado de El Gordo.

No Paraguai, aos poucos, Sergio ganha a confiança de El Gordo e vai se tornando um amigo da família. Ilu não esconde que gosta muito dele e acaba por se aproximar de vez quando El Gordo sofre um fatal ataque cardíaco. Enquanto Sergio vive seu exílio e dirige a loja com Ilu, Estela se aproxima de Hugo Brenner, o agiota que, por um momento, sentiu-se culpado ao descobrir que o marido dela teria morrido no caminho para pagá-lo. Nesse momento, as vidas que se cruzam constroem um destino inesperado e cruel.

Sergio vive no exílio cheio de culpa e remorso. A saudade que sente dos filhos parece matá-lo lentamente. Não consegue ser feliz, mesmo com o amor que Ilu escancara ter por ele. Não consegue esquecer e nem seguir em frente. Vive como um fantasma assombrado pela dura decisão que tomou.

Quinze anos se passam. Sergio, ao ter acesso ao Facebook vê uma postagem da filha e descobre que ela, já crescida, se casará. Ela grava um vídeo dizendo o que falaria para o pai, se ele estivesse lá com ela naquele especial momento. Sergio lutou todo esse tempo para conviver com a culpa e a dor que o consumia, mas ao ver o vídeo da filha, não consegue mais resistir e decide voltar para a Argentina. Daí em diante a tragédia toma conta dos destinos de todas as pessoas envolvidas na decisão de um homem.

Descanse em paz é um drama que envolve e nos prende do começo ao fim. A ambiguidade da decisão de Sergio nos convida a pensar o que faríamos no lugar dele para salvar a própria família. Se ele foi covarde ou corajoso, caberá a cada um de nós julgar, mesmo sabendo que qualquer julgamento que façamos nos tornará, de certo modo, um pouco hipócritas. Assim, até que ponto somos responsáveis por nossa própria tragédia? O longa de Borensztein é uma sutil provocação para todos aqueles que se acham donos do próprio destino.

 

 

 

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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