Que Blackbird é uma das músicas mais queridas dos Beatles, todo mundo sabe. Mas, o que ninguém esperava era que Beyoncé gravaria esse clássico de John Lennon e Paul McCartney em seu novo álbum, Cowboy Carter.
Cowboy Carter e a música country americana
O álbum de Beyoncé, lançado no final de março, causou grande impacto na crítica especializada por marcar a experiência da cantora norte-americana, mais do que consagrada, num estilo que não lhe é costumeiro, mas que tem uma relação profunda com a história do povo negro nos EUA.
A música country está enraizada no sangue afro-americano. Foi da África que o banjo chegou aos EUA e foi dos negros escravizados que surgiram o jazz, o blues, o rock´roll e o country. Assim, não seria estranho que uma cantora negra fizesse um álbum nesse estilo. Mas, num país que luta contra seu racismo, o peso da gravação de Beyoncé toma outra proporção, principalmente quando se associa ao movimento Blacklivesmatter, oriundo da indignação por tantos atos de racismo no país que gosta de se autointitular como o líder do mundo livre e da democracia ocidental.
Se não fossem as graves questões raciais que perpassam o contexto norte-americano, o álbum teria sido notado apenas como uma excelente obra musical. Mas talvez isso seria pouco para o tamanho do talento e do peso cultural da própria artista, que acabou criando uma peça poderosa no sentido político.
Hoje, nos EUA, o country é a música mais ouvida nos estados americanos onde o republicano Donald Trump recebe a maior quantidade de votos. Além disso, é a música que passou a ter, em sua vasta maioria, o domínio de artistas brancos.
Dessa forma, Beyoncé provoca a cultura americana e dialoga com ela buscando romper uma das barreiras invisíveis, que diferenciam a população negra da população branca que habita o mesmo país.
Blackbird, Paul McCartney e Beyoncé
A música Blackbird, composta por Lennon e McCartney, é uma das mais queridas e mais executadas dos Beatles. Já recebeu a versão de diversos cantores, dentre eles vários da música negra, principalmente em razão do seu simbolismo e da metáfora que apresenta de um pássaro negro que finalmente voa em liberdade. Bettye LaVette, por exemplo, diva do soul norte-americano, gravou Blackbird em primeira pessoa, carregando de força e transformando a música num verdadeiro hino. Billy Preston, outro gigante do soul, também gravou a música em 1972. Bobby Mcferrin, célebre pela canção don´t worry, be happy¸ fez sua versão da canção da dupla Lennon-McCartney.
Talvez a imagem de um pássaro voando seja realmente a mais forte para simbolizar a liberdade e esteja na centralidade da ideia da canção. Paul, em seu recém-lançado livro The Lyrics, disse que ele tinha consciência de que Liverpool no passado havia sido um porto de escravos. Além disso, em 1968, quando ele e John compuseram a música, tinham também a noção da terrível tensão racial que os EUA viviam. A canção foi escrita poucas semanas depois do assassinato de Martin Luther King Jr. e os acontecimentos de Little Rock ainda ecoavam na mente de Paul.
Assim, ao regravar Blackbird mantendo a estrutura e a melodia da música, Beyoncé definitivamente deu um tom político para seu álbum. A sua bela voz é incontestável e, agora, a sua coragem e engajamento a colocam em um patamar além da história da música. Blackbird não é, em definitivo, um mero capricho artístico da diva pop norte-americana, tampouco uma homenagem aos fab four. Ela é muito mais do que isso.