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A Resenha: Bebê Rena

A Resenha: Bebê Rena

            A série da plataforma Netflix Bebê Rena (2024) tem despertado o interesse de muitos telespectadores. Ao passo que se torna um verdadeiro sucesso, ela levanta uma série de questões importantes para o debate público. A repercussão da minissérie é incontestável e provavelmente ela ganhará alguns prêmios no futuro, ou pelo menos projetará os artistas que deram vida aos complexos e bem construídos personagens da trama.

Apesar da curta duração dos sete episódios, em torno de 27 a 30 e poucos minutos, Bebê Rena consegue desenvolver uma trama que oscila entre a comédia, o suspense, o drama e até o romance policial. A história, baseada em fatos reais vividos pelo próprio criador e protagonista, o surpreendente ator escocês Richard Gadd, que vive o personagem Donny Dunn, gira em torno da relação doentia que se estabelece entre ele e Martha, interpretada pela excelente atriz inglesa Jessica Cunning.

Donny é um jovem aspirante a comediante, que trabalha num pub em Londres. Certo dia, durante seu trabalho, vê Martha entrar no pub chorando. O aspecto de Martha não é o de uma pessoa que inspire qualquer tipo de admiração. Afinal, para os padrões sociais vigentes, ela não é bonita. É uma mulher de meia idade, acima do peso, que se veste mal, totalmente fora dos padrões de sucesso e desejo exigidos pela sociedade ocidental em geral. Diante da sua figura completamente estereotipada em alguém que simplesmente “não deu certo na vida”, Donny sente uma certa compaixão e oferece uma xícara de chá “por conta da casa”. A gentileza de Donny desperta em Martha sua personalidade paranoica-obsessiva. Afinal, ela, provavelmente, não estava acostumada a receber gentilezas que lhe fossem destinadas gratuitamente. Um simples olhar solidário acompanhado de uma gentil xícara de chá foram suficientes para desencadear sua fixação por Donny.

Martha cria em sua mente uma história fantasiosa. Para ela, é verdadeiro que a gentileza de Donny tenha acontecido, porque ele se interessou e realmente gostou dela. Ou seja, no mundo psíquico de Martha, o ponto de partida é que Donny começou um relacionamento real com ela. Daí em diante os acontecimentos são todos verdadeiros para ela, embora completamente desconectados da realidade fática. Há, portanto, um choque de realidades. Enquanto para Martha todo aquele sentimento é real, o sofrimento que ela causa a Donny também é, mas ela é incapaz de perceber, assim como Donny não consegue compreender como ela está envolvida nesse “romance”.

Da mesma forma que o ato de Donny desencadeou uma reação obsessiva compulsiva em Martha, a perseguição que Martha lhe faz desperta uma série de traumas, aflora e ameniza inseguranças que ele carregava consigo. Ou seja, mesmo que o telespectador seja levado a logo interpretar Martha com repulsa, por ser ela a mais óbvia a ser tomada como vilã da história, o que temos são duas pessoas traumatizadas, de percursos prévios dolorosos, que se encontram e entre si alimentam seus distúrbios e problemas psicológicos. Martha, num momento mais tardio, revela que teve uma infância muito infeliz, ao explicar o apelido que deu para Donny e que dá o peculiar título para a série. Nesse sentido, se na história conhecemos mais sobre Donny, pouco sabemos das razões que levaram a menina Martha a se tornar a mulher stalker, obsessiva, desequilibrada e traumatizada.

Sobre Donny, descobrimos que ele é um jovem que foi molestado sexualmente e obrigado a utilizar drogas pesadas. Ele é confuso em relação à própria sexualidade e tem dificuldades de compreender por que havia aceitado tudo que passara de maneira passiva, mesmo tentando elaborar mentalmente que tudo que fez foi em busca de fama. Aliás, sua relação com Teri (Nava Mau), uma mulher trans, sofre os impactos de seu sofrimento pessoal, tanto por conta de Martha, que o impede de viver em paz, como também em razão de sua incapacidade de manter uma relação sexual e afetiva saudável com qualquer pessoa. Parece que Donny precisa de uma relação abusiva.

Assim, de maneira muito angustiante, o telespectador percebe que sempre que Donny está perto de superar seus medos e a própria perseguição de Martha, ele volta atrás ou simplesmente retorna para um ciclo de auto degradação e baixa autoestima. Já Martha é completamente negligenciada e ignorada, de maneira muito semelhante, aliás, ao que foi retratado em o Coringa vivido por Joaquin Phoenix. Ela é sozinha, vive em um bairro periférico e se esconde em seu minúsculo apartamento sujo e caótico, onde o resto de comida se acumula ao lado do notebook, no qual escreve uma infinidade de e-mails para Donny. Martha é literalmente alguém que foi esquecida e excluída da sociedade.

Bebê Rena nos convida a refletir quais os impactos que os traumas podem ter no desenrolar de nossas vidas e o quanto de dor eles podem nos causar quando não bem tratados ou compreendidos. Traumas que nos forçam a reviver ciclos dolorosos e de intenso sofrimento.

Além disso, a série também nos leva a pensar o quanto tudo isso se torna mais intenso e violento em razão dos recursos que a tecnologia de hoje nos permite. Ou seja, o quanto o mundo das redes sociais e da internet tem nos expostos de maneira negativa. Vale lembrar que quando Donny tem um colapso emocional transmitido pelo Youtube, isso lhe dá fama, mas nenhuma solidariedade ou preocupação real afetiva e efetiva. Até que ponto a fama, que hoje se busca nas redes sociais, pode ser altamente destrutiva num mundo de likes e de haters? O quanto toda essa conectividade nos faz mal?

Não podemos deixar de lado o tema dos preconceitos que a série nos oferta; sejam eles os preconceitos que envolvem gênero e sexualidade ou aqueles sobre nossas conquistas profissionais. Tanto Martha quanto Donny são dois fracassados diante do julgamento social vigente. Teri, por sua vez, mesmo que tenha conseguido avançar contra os preconceitos que uma pessoa trans pode vivenciar todos os dias, vive numa linha tênue, pois a sua visibilidade como mulher é muito frágil e vive constantemente ameaçada numa sociedade que exige o raciocínio padronizado binário e biológico quanto ao gênero.

Desta maneira, Bebê Rena é uma curta, mas riquíssima série que nos convida a uma profunda reflexão sobre nossas condutas em relação a nós mesmos e como somos e esperamos ser vistos pela sociedade, que nos julga tanto presencialmente, como virtualmente. Além disso, temas como o abuso sexual, o assédio, a baixa autoestima, os efeitos depressores causados pela internet, as ambições profissionais num mundo individualista, competitivo e avassaladoramente cruel em julgamentos, os ciclos de abusos, a falta de solidariedade e empatia, o bullying no trabalho, o espetáculo do sofrimento exposto e viralizado fazem da série um seríssimo convite para parar para pensar no que estamos construindo e, talvez, para pensarmos sobre a nossa própria desumanização.

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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