“Essa dor talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato uma humanidade. Nós nos acostumamos com essa ideia, que foi naturalizada, mas ninguém mais presta atenção no verdadeiro sentido do que é ser humano. É como se tivéssemos várias crianças brincando e, por imaginar essa fantasia da infância, continuassem a brincar por tempo indeterminado. Só que viramos adultos, estamos devastando o planeta, cavando um fosso gigantesco de desigualdades entre povos e sociedades. De modo que há uma sub-humanidade que vive numa grande miséria, sem chance de sair dela – e isso também foi naturalizado.”
Uma poderosa crítica a nossa concepção de civilização e vida. É assim que descrevemos a obra “A Vida não é Útil”, de Ailton Krenak. Considerado um expoente da literatura indígena, Ailton é membro da comunidade Krenak, localizada no Vale do Rio Doce. A comunidade, que hoje sofre com a contaminação dos rios e os efeitos da atividade predatória brasileira, possui uma cosmovisão completamente diferente da nossa.
O autor escreveu o livro durante a pandemia e exprime um sentimento comum de uma ala progressista da sociedade, em que a pandemia seria uma boa oportunidade para revermos nossos padrões de vida e repensarmos o nosso modo de viver, uma vez que, para Ailton, não sabemos nem como viver, tema de seu último ensaio do livro.
A obra é um compilado de ensaios escritos durante o período da pandemia, que colocam em xeque concepções estabelecidas em nossa visão de mundo. No primeiro ensaio, “Não se come dinheiro”, Krenak questiona a nossa concepção de humanidade, dentro da qual criamos uma sub-humanidade, que inclui não apenas populações historicamente marginalizadas, mas também os animais e a natureza. Aliás, a natureza é elemento central em seu livro, ao mostrar que ela é um SER em si, não apenas um acessório para o “progresso”.
No segundo ensaio, “Sonhos para adiar o fim do mundo”, o autor se debruça a entender mais sobre os sonhos, que tem tanto a dimensão de linguagem como de afeto. Sonhamos não apenas individualmente, mas coletivamente. Para Krenak, a pandemia seria uma oportunidade de transformação. Entretanto, isso teria que se dar diante de outra matriz que não o capitalismo.
Já no terceiro ensaio, intitulado “A máquina de fazer coisas”, Krenak vai falar do terrorismo da modernidade e do consumismo, como se a Terra fosse um acessório substituível. “Convoquemos a experiência de estarmos harmoniosamente habitando o cosmos: é possível experimentar isso na nossa vida cotidiana sem se render a todo esse terrorismo da modernidade”: é assim que o autor nos faz repensar as nossas possibilidades de relação com o planeta que habitamos.
No penúltimo ensaio, “O amanhã não está a venda”, Krenak abraça uma concepção idealista de que a pandemia seria como um “anzol” nos puxando para a consciência. É interessante pensar como muitas pessoas se debruçaram sobre esta visão, no sentido de que a crise sanitária nos levaria a pensar e repensar nossos padrões de vida, caminhando para uma vida mais harmoniosa. Entretanto, sabemos, que não foi bem isso que aconteceu.
Por fim, o ensaio que dá título ao livro é um convite formidável para repensarmos nosso modo de viver, que sempre acaba sendo utilitário. Krenak vai falar que “estamos aqui para fruir a vida”.
O livro é relativamente curto, embora seja denso e, para ser devidamente saboreado, precisa de calma, para não o ler de forma utilitária. Os questionamentos e visões ali presentes podem ser pautas de discussões longas e profundas com o nosso coletivo.
A Vida Não é Útil é uma obra esplendorosa, que retoma a tradição indígena de transmissão de conhecimento através da oralidade. O livro é composto por textos ensaísticos elaborados a partir de lives e entrevistas cedidas por Ailton e organizadas por Rita Carelli. A editora é a Companhia das Letras.