O dia 27 de janeiro de 2025 marca os oitenta anos da liberação do pior[1] campo de extermínio produzido pelos nazistas durante o Terceiro Reich. É a data em que os soviéticos chegaram aos portões daquele cujo nome se tornou sinônimo de horror, medo e morte: Auschwitz. Para as gerações mais novas e desavisadas que habitam a Terra, pode parecer algo já distante na história, algo datado apenas como uma página triste da aventura humana nesse planeta. Contudo, para as gerações um pouco mais antigas e para aqueles que compreenderam o que ali se passou, Auschwitz ainda permanece próximo, como uma espécie de sombra da morte a nos avisar para tomarmos cuidado.
Relembrar Auschwitz é não só contar a história daqueles que foram brutalmente assassinados sem terem qualquer tipo de culpa, mas também procurar evitar que uma obscenidade como essa um dia possa vir a se repetir. Auschwitz foi o maior campo de extermínio que os nazistas produziram. Mais de um milhão de pessoas foram assassinadas naquele lugar incrustrado no sul da Polônia. Aqueles que não morreram nas câmaras de gás, padeceram de frio, fome, tifo e outras doenças.
O complexo era composto por três grandes campos: Auschwitz I, Auschwitz-Birkenau e Auschwitz-Monowitz. A maioria foi assassinada em Birkenau, onde quatro grandes câmaras de gás e crematórios funcionaram à exaustão como uma indústria de cadáveres[2]. Quando os soviéticos chegaram no dia 27 de janeiro, apenas 7 mil pessoas foram lá encontradas.
Foi curiosamente também em um dia 27, mas do mês de abril de 1940, que o chefe da SS, Himmler, deu a ordem para erguer um campo de concentração no sul da Polônia a partir de uma caserna que havia na região do atual município de Oświęcim, que entraria para a história em seu nome nefasto em alemão. Em 14 de junho de 1940 chegaram os primeiros prisioneiros políticos aos campos de Auschwitz. A partir de janeiro de 1942 o extermínio em massa de judeus tomou conta do campo. Em março de 1942 a Alemanha nazista deu início ao seu programa de deportação em massa de todos judeus e judias da Europa. Já com a proximidade cada vez maior da chegada dos soviéticos, os oficiais nazistas, em meados de 17 de janeiro de 1945, começaram a deixar o campo de extermínio e tentaram destruir, sem sucesso, todos os rastros que podiam levá-los a tribunais militares no pós-guerra. Todavia, ainda sim obrigaram 60.000 prisioneiros a andar cerca de 60 quilômetros em direção ao oeste, naquela que ficou conhecida como a Marcha da Morte. Praticamente a metade morreu durante o percurso.
Entender o que ali aconteceu com apenas esses dados seria muito pouco, insuficiente e não traria a dimensão do sofrimento que ali se passou. Por isso, colhi alguns relatos, com o objetivo de tentar transmitir o mínimo da crueldade que ali o ser humano foi capaz de impor a outro ser humano.
Em maio de 1944, com apenas 20 anos de idade, Freda Wineman foi presa em Saint-Étienne, na França, junto com seus pais e seus três irmãos. Seu único crime foi ter nascido judia. Em junho do mesmo ano ela e sua família embarcaram no trem que os levariam a Auschwitz-Birkenau. Ao chegarem no campo, ficaram todos juntos, ainda muito próximos à linha férrea. Uma das unidades de prisioneiros recrutadas pelos nazistas, denominadas de Sonderkommando, deu ordens para que as crianças e as mulheres mais velhas ficassem juntas. Nesse momento, Freda conta que um bebê foi tirado de uma jovem, de vinte poucos anos também, e dado à sua mãe. Freda automaticamente tentou ficar junto a sua mãe, mas foi impedida por um oficial, que ela acredita ter sido o doutor Mengele, o famoso médico que conduziu experimentos inenarráveis em crianças. Ele a mandou ficar em outra fila, junto às mulheres mais jovens. Enquanto isso, seu pai e seus três irmãos chegavam à frente da fila deles. Os membros do Sonderkommando mandaram ficar todos juntos, mas David, o irmão mais velho de Freda, pensou que seria melhor que Marcel, o mais novo da família, de apenas 13 anos, ficasse com a mãe deles. Assim, ordenou para que o pequeno corresse para a fila onde a mãe, de 46 anos de idade, estava. Marcel o fez.
Sem saber, David havia mandado Marcel para a morte imediata. Esse era um exemplo da seleção feita com as pessoas que chegavam ao campo de extermínio de Auschwitz. Todos iriam morrer para os nazistas, mas, como provavelmente mulheres mais velhas e bebês pouco aguentariam, era mais prático matá-los imediatamente. A mãe de Freda e o bebê que ela estava segurando morreram poucas horas depois em uma câmara de gás do complexo. Marcel também. Ele estava no limite de idade entre trabalhar e demorar um pouco mais para morrer ou morrer imediatamente. Mas, como David tomou aquela decisão, que seria a mais correta em condições normais, Marcel não pode celebrar seus 14 anos de idade. Afinal, aquilo não eram condições normais de vida e sim um lugar onde a ética, a moral e o respeito ao ser humano tinham sido completamente deturpados e invertidos[3].
Antes mesmo dessa seleção para a morte, o próprio transporte para os campos já infligia um sofrimento profundo. Sobreviventes relatam a profunda solidão que experimentaram naqueles momentos entre o local de onde foram forçadamente retirados e a chegada nos campos, como se tivessem sido cativos a vida inteira. A claustrofobia, o calor, a sede e o mau cheiro eram constantes. Não havia lugar para urinar ou defecar. Os judeus transportados para os campos tinham de fazê-lo ali mesmo, dentro do vagão, num único balde. O balde, mencionado por quase todos os sobreviventes, logo transbordava de fezes e urina. Muitos vomitavam. Eram horas e horas intermináveis, às vezes vários dias.
Já nos campos, aqueles que não tinham sido executados imediatamente experimentavam situações de indignidade constante, num processo metódico proposital de retirada da própria humanidade. Eram tratados como animais, para se sentirem como animais. Eram humilhados para que não houvesse ânimo ou qualquer autoestima. Uma espécie de destruição em vida da própria ideia de pessoal moral. Em Auschwitz e nos demais campos, por exemplo, havia uma latrina coletiva, imunda, onde eram obrigados a fazer suas necessidades diante dos outros, em geral sempre sendo apressados. Cada mulher recebia uma gamela que lhe servia tanto para tomar a sopa como para urinar ou evacuar à noite, quando não se podia ir à latrina.
Em Auschwitz e nos demais campos, a fome era tão onipresente que superava as necessidades sexuais. “Sonhávamos com estar com fome. Não me importava de não ter sexo; não tínhamos sonhos eróticos; nossa fragilidade física, nossa agonia de fome, nossa exaustão e a memória dos espancamentos frequentes, tudo isso combinado nos tornava incapazes, mesmo por um momento, de sonhar com a mulher com a qual sonhávamos ou pela qual estávamos apaixonados”, relatou o sobrevivente do Holocausto, Paul Matussek.
As mulheres foram desenvolvendo uma aversão tão profunda ao sexo, principalmente por conta do medo constante de serem estupradas, que muitas das que conseguiram sobreviver tiveram, além de traumas profundos, menorreia (suspensão do fluxo menstrual).
Nanette Blitz Konig, que sobreviveu ao campo de Bergen-Belsen, relata em seu livro de memórias que no dia seguinte à libertação chegaram caminhões do exército britânico carregados com comida enlatada que era servida aos soldados. A desnutrição era tão extrema que muitos dos sobreviventes morreram ao ingerir toda aquela comida porque o corpo deles estava tão fraco, que não era capaz de suportar uma quantidade de calorias tão grande em tão pouco tempo. Estavam tão famintos que comeram praticamente sem respirar e morreram por não tolerar o que comiam. De acordo com Nanette, as tropas britânicas estimam que naquele momento morreram em torno de duas mil pessoas por não suportarem a alimentação imediata[4].
Alexander Henryk Laks e seu pai, Jacob Laks, foram obrigados a participar da Marcha da Morte que saiu de Auschwitz um pouco antes de sua liberação pelos soviéticos. Ele nos conta que durante a marcha seu pai, já não mais aguentando caminhar, disse-lhe que se sentaria para descansar um pouco. Sentar era a mesma coisa que morrer, pois os nazistas não toleravam ali qualquer um que fizesse a marcha parar. Marchar era marchar e ponto final. Diante disso, avisou ao pai que se ele se sentasse, ele iria se sentar também, pois não iria viver sem ele. Nesse momento, um outro prisioneiro, tão fraco e tão debilitado quanto seu pai, ofereceu o ombro para que os três pudessem sustentar-se em conjunto. Conta Alexander que até hoje lembra disso com um extremo carinho e como uma lição de bondade, pois aquele ato permitiu que o seu pai vivesse mais um pouco e de fato ele viveu alguns dias a mais.
Alexander Henryk revela que até hoje não consegue esquecer do pai caindo morto e dos piolhos descendo da cabeça dele. Piolhos não ficam em cadáveres. Aquele homem que sempre esteve ao seu lado, protegendo-o e guiando-o desde o seu nascimento tinha se juntado ao seis milhões de judeus que perderam suas vidas na Shoá.
Nas palavras de Alexander: “considero Auschwitz um marco divisório da humanidade. Existe o antes e o depois de Auschwitz. Quem viveu uma noite em Auschwitz, pode viver cem anos depois, e não vai conseguir comparar o que viu naquela noite. Na minha primeira noite em Auschwitz, eu vi um homem, que estava ao lado do meu pai, ser levado pelos Kapos e Stubendienst, que apertaram a garganta dele até morrer asfixiado ao meu lado. No dia seguinte, eles pegavam na cozinha as porções de pão que sobravam, pois os mortos eram contados como vivos. No outro dia contavam novamente, e à noite matavam de novo. Matavam de acordo com a quantidade de pão e salame que eles precisavam” (…) “Sempre que alguém queria perguntar alguma coisa, recebia como resposta: ´Cale a boca! Você está em Auschwitz!`. Certo, eu já sabia que eu estava em Auschwitz, mas o que é Auschwitz? Eu não sabia. Então me disseram: ´Daqui só existe uma saída: pela chaminé` – quer dizer, pela chaminé do crematório – ´Aqui ninguém sobrevive, então cale a boca e faça o que lhe é ordenado”[5].
Os relatos de pessoas que sobreviveram nos trazem a magnitude do horror, a dimensão do abismo que Auschwitz, como metonímia da Shoá, representou. É aterrorizante ainda imaginar que a grande maioria que padeceu sem qualquer culpa jamais poderá ser relembrada ou ao menos, por seus familiares, homenageada. Afinal, não há túmulos, não há lugar para flores serem levadas individualmente. Muitos dos que ali foram assassinados jamais terão seus nomes relembrados, pois os nazistas destruíram todos seus documentos e retiraram deles não somente a vida, mas também o direito de um dia ter existido.
É preciso sempre alertar que Auschwitz se tornou o símbolo do Holocausto, mas a Shoá foi construída aos poucos, muito antes, desde os primeiros arroubos antissemitas que foram tomando a sociedade alemã durante o século XIX até chegar ao início do Terceiro Reich. O racismo foi a sua pedra fundamental e ele continua a rondar a espécie humana como um lobo que constantemente observa a sua presa.
Relembrar Auschwitz é mais do que necessário, é uma tarefa, um compromisso de amor ao mundo, de responsabilidade para com as futuras gerações, para que elas possam compreender o que levou a algo tão abominável. Não foi só Hitler, não foi só o partido nazista, foi uma sociedade inteira que um dia acreditou que certos seres humanos não tinham o direito de existir, pois eram inferiores. Foi toda uma nação que julgou que matar crianças, idosos, mulheres não seria mal algum, senão um favor ao mundo, por livrá-lo de seres indesejados.
Auschwitz nos alerta que tolerar movimentos neonazistas e ignorar o racismo crescente em nosso tempo é flertar com uma das cenas mais assustadoras que a humanidade já produziu. Como diria Primo Levi, todo tempo tem seu fascismo, é preciso estar atento. Como diria Freud, toda geração produz seus monstros, é preciso perceber. Auschwitz é mais do que a memória de um povo e de pessoas que foram condenadas a morte por terem nascido como elas eram, por terem sofrido uma pena sem qualquer culpa; Auschwitz é um alerta para todos nós de que tudo é possível, basta que exista entre nós o ódio, a divisão e o racismo.
Nas palavras de Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira: se podes olhar, vê. se podes ver, repara. É preciso eternamente relembrar Auschwitz e não nos cegarmos.
[1] Certamente não é possível mensurar entre pior e bom um lugar como este. Vale a nota para deixar claro que seja em Auschwitz ou em qualquer outro, todos os campos de extermínio foram horrorosos, medonhos e brutais.
[2] Antes dos soviéticos chegarem a Auschwitz os nazistas tentaram destruir tudo que ali havia, mas a magnitude do gigante complexo impediu que isso fosse feito às pressas. Lá era possível matar 12 mil prisioneiros por dia e, de acordo com Marcos Guterman, tinha a capacidade para acomodar 2 mil prisioneiros de uma vez e matá-los em 15 minutos. Gunterman, Marcos. Holocausto e Memória. São Paulo: Editora Contexto, 2020, p. 203.
[3] Relato descrito com base no depoimento da sobrevivente Freda Wineman a Laurence Rees, que compõe sua obra fundamental “O Holocausto. Uma nova história”.
[4] Konig, Nanette Blitz. Eu sobrevivi ao Holocausto. O comovente relato de uma das últimas amigas vivas de Anne Frank. São Paulo: Universo dos Livros, 2019.
[5] Esse é um dos vários relatos da seminal obra de Sofia Débora Levy, que busca transmitir o que aconteceu em Auschwitz por meio de um processo de vivência e empatia, onde a compreensão se torna capaz de ir além do mero fato histórico. Levy, Sofia Débora. Holocausto. Vivência e Retransmissão. São Paulo: Perspectiva, 2014, pags, 91-92.