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1976

1976

            O ano de 1976 foi um dos mais sangrentos da ditadura militar chilena, comandada pelo General Augusto Pinochet. Durante o regime que durou de 1973 a 1990, após o covarde golpe contra o governo democraticamente eleito de Salvador Allende, com apoio e financiamento dos EUA, milhares de pessoas foram assassinadas e torturadas sem qualquer tipo de direito de defesa ou devido processo legal. Inúmeras execuções sumárias foram feitas pelo estado chileno sob as ordens do ditador, que teve em seu vasto currículo de brutalidade, apenas para exemplificar, a Operação Condor, a Operação Colombo e a Caravana da Morte. Quando Pinochet deixou o poder sofreu mais de 300 ações judiciais por conta dos crimes que cometeu e dos escândalos de corrupção em que esteve envolvido, inclusive acerca dos milhões de dólares que escondia em offshores.

É no contexto do início dessa sangrenta ditadura que se passa o suspense noir 1976 (2022), dirigido pela jovem diretora Manuella Martelli e vencedor do Prêmio Goya de melhor filme Ibero-Americano. O longa é baseado em fatos reais da vida da avó da diretora e estrelado pela ótima atriz chilena Aline Küppenheim no papel de Carmen, uma esposa, mãe e avô de classe média alta que vive sua pacata vida, alheia aos acontecimentos políticos que atravessam o país. Ela é casada com Miguel (Alejandro Goic), um médico respeitado na capital chilena e destina suas preocupações mundanas principalmente para a reforma da casa de praia do casal.

Carmen vive um período de tédio e solidão. Ela toma comprimidos para dor de cabeça e tem insônias a todo tempo. Parece sentir-se desmotivada e um pouco inútil. Ela é o retrato de uma sociedade extremamente paternalista e patriarcal, que coloca mulheres cheias de potencial como satélites dos maridos, destinadas à vida doméstica e familiar. No entanto, essa calmaria apenas aparentemente idílica se rompe quando o padre Sánchez (Hugo Medina) vem lhe pedir ajuda para socorrer um jovem ferido.

Fora as obrigações domésticas e maritais, a única atividade profissional de Carmem havia inclusive sido dada pelo padre Sánchez, razão pela qual ela dificilmente lhe negaria um favor. Graças a ele, ela tinha a ocupação de ler para pessoas cegas no reduto da Igreja. Carmen até brincava com sua filha dizendo que havia se tornado professora de literatura. O que Carmen não sabia era que o jovem ferido não era um criminoso qualquer.

Assim, Carmen começa a cuidar de Elias, codinome que o jovem membro de uma organização de resistência à ditadura de Pinochet usava. Ele foi gravemente ferido por conta de um tiro em sua perna. Ela cuida secretamente dele, sem avisar ao marido ou a qualquer pessoa próxima.

No início Carmen apenas cuida do ferimento e do estado de extrema fragilidade de Elias. Todavia, aos poucos, cria uma afeição materna para com ele, o que a faz se preocupar com o rumo que ele tomaria dali em diante. Nesse ínterim, Carmen se envolve com a organização a que Elias pertence para tentar ajudar a devolvê-lo em segurança para ela. No momento em que ela percebe que o jovem não era um criminoso comum, indaga o padre Sánchez sobre o que estava ali acontecendo. Diante disso, ele explica por qual motivo resolveu dar abrigo e salvar Elias.

Aos poucos a vida pacata de Carmen se torna um verdadeiro terror psicológico. Ao passo que tenta ajudar Elias com os encontros e os códigos que recebe dos seus camaradas, sente-se vigiada e perseguida pelo regime. Um dos melhores elementos do longa está na capacidade com que a diretora construiu um ambiente altamente tenso, nervoso e ambíguo. Enquanto vamos acompanhado a trajetória de Carmen, não conseguimos saber quem a vigia e quem simplesmente não passa de uma pessoa comum que resolveu com ela conversar ou oferecer alguma ajuda.

Carmen vai gradualmente sentindo o terror que uma ditadura impõe à vida das pessoas quando ela usa dos aparatos estatais para perseguir e matar. Afinal, sabe que se for pega será, além de torturada, responsável pela provável morte de Elias. Vale aqui mencionar a excelente trilha sonora, composta pela musicista brasileira Mariá Portugal, que dá ao ritmo do filme um tensionamento angustiante e sombrio. A fotografia do filme também contribui em muito para a sensação de distância, isolamento e fragilidade. As tonalidades mais escuras apenas se chocam com o vermelho sangue, que uma vez ou outra aparece na história.

Sem maiores reviravoltas ou surpresas, o destino de Carmen é fiel ao sofrimento que muitas pessoas sentiram durante os anos de Pinochet no Chile. Ela e o padre Sánchez, mesmo com medo e rodeados de pessoas coniventes e favoráveis à ditadura sanguinária, escolheram agir, mesmo que o preço por isso fosse alto. Sánchez, inclusive, é o típico homem religioso que, ainda sim humano, com dúvidas e medo, enfrentou da maneira que podia a injustiça e a brutalidade que toda ditadura é capaz de criar. Carmen paga o preço daquilo que um dia Albert Einstein disse: a mente que se abre a uma nova ideia, jamais voltará ao seu tamanho original.

1976 é, assim, um filme obrigatório, principalmente por vivermos tempos em que certos revisionismos equivocados são feitos acerca das brutais ditaduras militares que ceifaram vidas, torturaram pessoas e destruíram famílias na América do Sul. Como dizem os chilenos: nem esquecer e nem perdoar. É preciso aprender sobre o que realmente foi todo esse período sombrio e 1976 nos ensina muito bem.

 

 

 

 

 

 

Observação: Esse conteúdo não representa, necessariamente, a opinião da Fundação Podemos.

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